sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Haiti e nós

“Não tenho palavras para descrever o que mais esse povo aguenta sofrer além de miséria, fome, violência”, escreveu o tenente pernambucano Ricardo Couto, ao descrever sua experiência com o terremoto desta semana no Haiti.

Até antes do terremoto, o Haiti tinha nove milhões de habitantes – menos que a população da cidade de São Paulo, menos que a população do Pará. Os brasileiros estão no Haiti comandando a força de paz da ONU e é por essa razão que o tenente está lá. Ao contrário do Pará e São Paulo, o Haiti é uma única e atroz miséria. Sua história é de extrema violência: este país é parte da Hispaniola, obrigatoriamente mencionada em todo os livros escritos por ou sobre os piratas e corsários do Caribe; as guerras – de conquista e civil – a escravidão e as ditaduras sucessivas traçam uma trilha contínua de sangue desde sua origem. A intervenção da ONU não é a primeira sofrida por esse país. Sua independência, porém, não foi o mero rompimento de uma colônia com o colonizador: ela foi a liberdade dos escravos.

Estamos lá como tropa de intervenção, garantia de paz. Mas isto nos basta?

A morte da brasileira Zilda Arns aponta um caminho. Ela estava lá: tentava levar a experiência da Pastoral da Criança – pequenas medidas, pequenas despesas que salvam vidas – para aquele povo. Para ela, não bastou.

Tenho lido artigos, estórias, História, lembranças, críticas e comentários sobre o Haiti, sua tragédia nacional antiga e sua tragédia nacional recente. Pouco, muito pouco, porém, de propostas concretas em favor do Haiti. Salvo dos esquadrões de voluntários profissionais da ajuda humanitária, o restante é o de sempre: estudos, contendo críticas pesadas aos governantes; correntes de arrecadação de fundos; comentários, igualmente com críticas aos governantes, aos Estados Unidos. Na maioria dos estudos falta a perspectiva histórica, é o olhar do século XXI sobre o século XVII.

É preciso um pouco mais. O que fazer quando um país perde quase toda sua elite intelectual, soterrada em sua única Universidade? Uma geração inteira de estudantes se foi. Como reconstruir os investimentos, se os líderes econômicos também se foram? Este terremoto tem mais consequências que desabrigados e famintos: ele criou uma ruptura social profunda – num país acostumado à violência. As fotografias mostrando homens armados com paus e pedras tumultuando as filas cheias de mulheres, crianças e idosos falam por si sós.

A solidariedade com o Haiti precisa ir além do dinheiro, dos discursos, dos artigos acadêmicos e dos estudos. Será necessário recompor a inteligência do país, oferecer conhecimento, para aproveitar a anistia da dívida externa do país (exceto a Venezuela e Taiwan, todos os demais credores anunciaram o cancelamento das dívidas – Hugo Chávez acusa os americanos de tentar “ocupar” o Haiti, mas não fala em perdão). Isto poderá dar à população do Haiti o tempo que precisa para se recompor – quem sabe ultrapassando de vez a longa série de reis, presidentes, ditadores e interventores que dirigiram o país com tanta crueldade?

Quem sabe, também, se nós, brasileiros, não aprendemos com eles um pouco mais de humildade?