quarta-feira, 6 de junho de 2007

O livreiro e o silêncio

Volto a “O Livreiro de Cabul” porque há um mérito nesse livro que somente um outro jornalista, este italiano, consegue dividir: como em “Kapput” e “A pele”, de Curzio Malaparte, a história de uma guerra é contada a partir do sofrimento das pessoas que não estão nas linhas de frente, mas nas cidades arrasadas, nos campos queimados, nos rios poluídos, e tentam desesperadamente sobreviver e manter a esperança.

Malaparte vai mais fundo que Asne Seierstad: ele retrata também o desmantelamento moral de um sociedade a partir da violência da guerra. Por isso, seus livros provocam um choque: a face oculta das conquistas militares está toda ali.

É inevitável a expressão de horror ao fim dessas leituras, e uma pergunta surge naturalmente: como isso aconteceu, como chegou a esse ponto?

Guerras são frutos, elas amadurecem aos poucos. Elas derivam de situações críticas, de problemas cujas soluções foram adiadas por longo tempo. Elas contam com a cumplicidade da sociedade, e principalmente com a falta de perspectivas para os jovens adultos. Contam com as ambições desenfreadas, com a cobiça e com o medo.

E contam, sobretudo, com a censura de informações.

Não há guerra que tenha acontecido que não tenha sido antecedida por mecanismos de censura sobre a imprensa e a liberdade de expressão. A censura é o útero das guerras, sejam civis, sejam puramente militares.

Eis porque a decisão de Chávez, na Venezuela, de revogar uma concessão para uma emissora oposicionista, sem que esta tenha dado causa objetiva, ou seja, sem que ela tenha deixado de cumprir as exigências da concessão, é tão grave. Se somarmos a essa medida o fato de que Chávez substituiu a emissora por uma oficial, e que anunciou a organização de um superpartido político, não é difícil ver a repetição da estratégia política de Salazar, Franco, Hitler, Stálin, Fidel Castro, Getúlio Vargas e outros.
O caminho é um só, usar a plataforma eleitoral para uma ditatura, que pode até mudar de ditador, como na história recente do Brasil, e na antiga Roma, mas que é ditatura de qualquer maneira.

E não adianta colorir o quadro com o cor-de-rosa da “revolução popular”. Ditaduras não têm ideologia: as pessoas se tornam “povo”, ou “massa”. Desaparecem os rostos marcados pela necessidade, a dor individual descrita por Seierstad e Malaparte, para dar lugar a um ente difuso e abstrato, em nome do qual se justificam todas as violências praticadas em favor da “causa”, da “bandeira”, do “objetivo”, da “finalidade”.

Bem, isto acontece na Venezuela - poderão dizer alguns. Mas nenhum país é mais solitário, neste acelerado processo de globalização que vivemos, embora o presidente do Brasil diga que cada qual deve cuidar do seu território e ponto final. Nem Brasil nem Venezuela prescindem dos consumidores estrangeiros – e, se somos democratas, temos que ouvi-los e prestar atenção no que acontece com eles. Mais, ainda: a solidariedade é fundamental entre os povos, se queremos paz. E solidariedade também faz pressão contra uma autoridade que esteja tomando um rumo que a maioria não aceita.

É provável que o abuso de Chávez, agora cometido contra a imprensa, esteja calçado em milhares de abusos menores, cometidos contra Marías e Pacos, porque, se não fosse assim, talvez não se sustentasse politicamente. O que significa dizer que a ditadura já lançou suas raízes no país vizinho. Questão de tempo produzir seu fruto de violência, a guerra, qualquer que seja ela.