segunda-feira, 21 de maio de 2007

Os alicerces do muro

Mais uma vez o governo tenta, por várias maneiras, instituir mecanismos de censura na livre manifestação. Ouço o Ministro da Justiça dizer na televisão qualquer coisa como a liberdade de expressão é sagrada, mas a proteção da sociedade também é.
Este tipo de argumento, com palavras variando conforme a época, mas exprimindo a mesma coisa, pode ser encontrado em todas as fases históricas brasileiras, e, abrindo espaço para o mundo, nos alicerces de todos os governos fortes.
Governo e imprensa, no Brasil, vivem um conflito permanente. A estrutura de poder brasileira é imperial: como em todos os países de grande extensão territorial, a manutenção da unidade conduz à hipertrofia do poder central. E, em conseqüência, a um sistemático conflito com a imprensa.
Esse conflito é essencialmente político. O argumento do ministro é apenas o confeito do bolo, destinado a mobilizar setores sociais ativistas, cheios de boa vontade e ansiosos em defender suas causas, para servir de cobertura açucarada, disfarçando a massa amarga que será servida aos cidadãos.
Os freios da imprensa são sociais. Não existem outros. A imprensa reflete a sociedade a que se destina. A interminável história de jornais e revistas falidos – dos intelectualíssimos até os degradantes, passando pelos semi-especializados – mostra com clareza meridiana que, ou se trabalha de acordo com o público, ou o público se afasta. E aí não adianta ter veículo de comunicação, porque a comunicação deixou de existir.
Mas jornais, revistas e mídia audio-visual têm um peso político determinado. Ele não é tão grande como parece, nem tão pequeno como os governos gostariam que fosse. Mas é exercido conscientemente: as conseqüências de uma notícia estão intimamente ligadas a ela, e não há jornalista, hoje, que não faça a sua seleção de noticiário, dentre as montanhas de informação do cotidiano, sem considerar o que vai acontecer depois.
Essa consciência do exercício político da imprensa é que incomoda os governos.
Hoje, particularmente, em função da herança maldita deixada pelos governos militares e seus vinte anos de censura: por mais que lesse os jornaizinhos proibidos, o ser social chamado Lula foi moldado com jornais sob censura. E, como ele, toda a geração de dirigentes políticos de hoje, no Brasil. Mesmo os que se consideram mais democratas, mais comprometidos com as liberdades, deslizam, muitas vezes sem perceber, para a zona cinzenta do controle da expressão, em nome do que chamam de responsabilidades. A censura de que foram vítimas é um dos componentes da base de sua personalidade política; está no alicerce do muro que sustenta o poder que eles exercem.
E é esse, exatamente, o mal terrível da censura: ela projeta seus resultados no tempo, ela altera a história mesmo depois da era em que foi exercida, porque mutila o pensamento das pessoas. Quando os governantes e a população do Rio de Janeiro pede que tropas do Exército subam os morros, estão simplesmente exprimindo algo que lhes foi incutido no governo militar: a imagem salvacionista das Forças Armadas, do tempo que estas Forças eram a grande polícia nacional.
A censura priva o cidadão de estabelecer seus próprios parâmetros. Ilude-se quem pensa em “salvar” a infância estabelecendo horários de exibição de programas. A infância apenas dormirá mais tarde; ela tem sua cota diária de vida real dramática, no acidente que testemunha, na violência doméstica que de vez em quando sobra para ela, no medo dos bandidos e da polícia, numa infinidade de pequenos episódios cotidianos que a censura jamais vai alcançar. A infância está exposta a drogas em todos os lugares que freqüenta: não vai ser a televisão que vai conduzi-la. Pelo contrário: a televisão vai lhe dar melhores condições de criar seu próprio código, porque lhe passa a informação interpretada, que o choque da violência testemunhada não tem.

As tentativas feitas neste governo para controlar a imprensa têm fundas raízes, pois. Identificar essas raízes e isolá-las – porque não é possível erradicá-las – seria o ato mais democrático e de melhor serviço social que os governantes poderiam praticar, hoje, atendendo o curto, o médio e o longo prazos da construção da sociedade brasileira.

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