Mais uma vez é Natal, e barbudos fantasiados preenchem de concretude a imaginação das crianças. Os sininhos tocam, neve de mentirinha cai nos cartões eletrônicos, chegam as listas, ah, as listas: gêneros para as cestas católicas, protestantes, espíritas, filantrópicas e nem tanto; dinheiro para as caixinhas dos porteiros, dos lixeiros, dos empregados do açougue e da padaria; brinquedos para as promoções das ongs, e você não vai ver a apresentação das crianças do balé?
Mais uma vez é Natal, e tenho a impressão que a caridade, ela também, foi industrializada, massificada, despersonalizada: chamam isso de redes sociais, essa coisa de anônimos para anônimos, o horror dos eventos de entrega de brinquedos – uma boneca para a menina, um carrinho para o menino – e o pai ou a mãe na fila com a criança, e pessoas de boa vontade, com sorrisos de beatitude organizando a fila e repreendendo, e cadê o olho brilhante da criança abrindo seu pacote na manhãzinha, com o cheiro do café e o sorriso terno da mãe anunciando o Natal?
Mais uma vez é Natal, e no correio eletrônico as caprichadas apresentações recheadas de pensamentos nobres sobre Amizade, Amor, Agradecimento, Prece, Jesus, se sucedem ao som inevitável da Ave Maria, Gounod ou Schubert, em megabaites e megabaites de bons sentimentos e erros gramaticais, e no correio comum cartões recortados em forma de presentes oferecem juros estratosféricos e objetos desnecessários, com mensagens otimistas disfarçando a rapina.
Mais uma vez é Natal e os bazares se abrem, mas os bordados e rendas cederam espaço para as pinturas em tons fortes, cítricos, rápidos e baratos, e a beleza vai buscar refúgio nas joalherias, mais e mais inacessível, ensurdecida pelas músicas em duas escalas e duas vozes, três notas acima, três notas abaixo, a percussão fingindo qualidade e animação, purpurina sonora que desaparece no primeiro movimento, deixando somente feias marcas na memória.
Mais uma vez é Natal e os olhos dos ladrões com e sem gravata se arregalam diante do rio de dinheiro que corre, jorrando dos bancos e espraiando-se nas lojas, nas bancas de camelôs, nas barracas de feira e nas sorveterias, e é preciso participar, ir buscar, tomar e levar, não importa como, pode ser com um buraco de bala e pode ser com um buraco no bolso do cliente, tem que ser agora porque logo, logo, este rio voltará ao seu leito e então será a dureza de sempre.
Mais uma vez é Natal e os espaços se enchem de estórias de boas ações e também das boas ações com que as pessoas se absolvem dos malfeitos do ano todo, e nos olhamos uns aos outros admirando a espécie humana, tão generosa e tão nobre, tão rica de bem dizeres, ah, sim, podemos até considerar pitoresco o fato de que as luzes coloridas se refletem nas ruas inundadas de água represada e suja pelo descaso com o saneamento básico, e podemos olhar com beatitude corais cantando doces músicas de confraternização.
Mais uma vez é Natal e colegas de trabalho trocam seus ressentimentos junto com presentinhos de baixo valor, com tapinhas nas costas e murmúrios por detrás delas, alguém fazendo karaokê e os brindes dos fornecedores, em pacotes fechados, acendendo desejos entre as mesas.
Mais uma vez o Natal chegou com seu cortejo sentimental e sua crueldade difusa, risos e lágrimas entre luzes e ceias, entre orações e cânticos, entre incensos e velas, entre saudades e alegrias.
E se não chegasse, nós seríamos, com certeza, muito, muito piores do que somos. Por isso, armemos árvores e presépios e façamos esta noite feliz.
E em paz.
São meus votos, leitor.
domingo, 19 de dezembro de 2010
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2 comentários:
Amém!
Ditto!
Eli
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