A lei da ficha limpa é, antes de mais nada e para quem quiser ouvir, um clamor da sociedade contra a ineficácia do Judiciário. Porque ela seria absolutamente desnecessária se Jáder, por exemplo, já tivesse sido julgado por um processo que corre há mais de dez anos. Ou seja: se entre o inquérito e a solução dele – condenação ou absolvição – não se passasse uma eternidade.
Mas o Judiciário não se dá a respeito. Neste exato momento jogou no colo do presidente da República uma decisão que deveria ser exclusivamente sua. Um presidente que está liderando uma campanha eleitoral e não faz nenhum mistério disso. Pendurados na caneta estão diversos eleitos, o que torna a decisão de não decidir, tomada pelo Supremo, um escândalo.
Imaginem vocês se um grupo de policiais que negociasse a entrega de reféns, decidisse que estavam empatados em como agir, e seria preciso um voto de desempate... A comparação é dramática, mas essencialmente trata-se da mesma coisa. É preciso libertar os eleitores, reféns de corruptos – e só o Judiciário pode dizer quais são e quais não são corruptos. Se o Judiciário não diz, resta forçar a barra com a ficha limpa. Mas o Judiciário se tornou granítico: nem se toca, e continua não decidindo.
Um bom juiz, um juiz de verdade, que não se limita a ser um aplicador de lei e a vistoriar a formalidade dos processos, faz muita diferença. Conheci e conheço alguns deste escopo; juízes de direito que pacificaram cidades e regiões, juízes do trabalho que reconstruíram instituições, juízes da infância e da adolescência que recuperavam infratores, juízes de execuções penais que humanizaram prisões. Juízes que exercem sua autoridade social e aquilo que é o atributo mais precioso da magistratura e, nos últimos tempos, anda muito ignorado: o livre convencimento.
A questão não é de ficha, portanto, mas do que conduziu a ela. Porque boa parte da violência com que hoje nos defrontamos se origina exatamente da falta de eficiência do Judiciário.
Tenho ouvido muitas pessoas dizerem que o Estatuto da Criança e do Adolescente favorece a criminalidade, porque com o infrator “não pega nada”. Mas não é a lei que é ruim; é a execução da lei. As dependências penais vivem cheias de presos chamados temporários: eles aguardam julgamento e, quando o tempo de espera é maior do que a pena aplicável ao crime, eles são soltos. Essas pessoas cumprem penas sem julgamento. Se forem inocentes, azar deles... O que para mim é o escândalo maior de todos. De que vale a presunção de inocência, tão alegada agora nos debates da ficha limpa, para essas pessoas que tiveram anos de sua vida tragados na cadeia, sem culpa alguma? E que saem sem reabilitação, sem que possam dizer: vejam, eu fui acusado injustamente!?
As penas cominadas para o uso de adolescentes em delitos são pesadas; envolvem corrupção e exposição ao perigo; seriam suficientes para coibir o uso de pivetes pelas quadrilhas. Mas cadê sua aplicação? Os presos temporários, se criminosos profissionais, se beneficiam da ausência de julgamento com a mesma desenvoltura dos candidatos culpados que não foram condenados: saem porque a preventiva não foi decretada.
A lentidão acumula processos; as torres de recursos atravancam tudo. O acúmulo gera mais lentidão, e assim por diante, numa espiral perversa, sempre para pior.
A lei da ficha limpa na verdade é uma advertência – que, ao que parece, o Judiciário não entendeu.
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