segunda-feira, 2 de março de 2009

Burocracia centenária

A jovem senhora olhou para mim como quem está insultada e diz:
- Ah, mas vai ter que esperar, sim! Afinal de contas, isto é uma repartição pública!
O estupor me impediu qualquer resposta, e a raiva que se seguiu era absolutamente inútil. Desde que entrara naquela repartição municipal que eu vinha acumulando irritação, mas a frase da jovem senhora me mostrou que qualquer reclamação bateria em cheio numa muralha de indiferença. Pior: na firme e enraizada crença de que o usuário do serviço público é um transtorno, e que todos, absolutamente todos os que entram numa repartição são suspeitos.
A coisa começara no protocolo. Apresentei o documento, pediram cópia da minha identidade. Para que?, perguntei. Para anexar na petição, responderam. Sim, e...? São ordens, me disseram. Eu disse que não ia tirar xerox nem anexar cópia alguma pela simples razão de que qualquer pessoa, com identidade ou sem, pode peticionar em qualquer protocolo. E a obrigação do protocolo é receber o documento – ou teria que obrigá-los?
De nariz torcido, a funcionária cheia de curvas nos lugares errados recebeu e carimbou o papel. O que me levou a crer que essa história de identidade é simples adiamento do trabalho – aplicando-se a consagrada técnica de matar o cliente pelo cansaço.
Há quatro meses ando em busca do dito papel, igual aos mendigos de Istambul: atrás de mim, uma corrente de latidos: ao... ao... ao... O último “ao” já me comunicou que é só mais um da série; e não adianta discutir.
Este último “ao” é um jovem e guapo mancebo. Sua mesa está vazia, e era o meio da manhã. Ele não sabe o que reivindico, porque não se deu ao trabalho de ler o documento que passou em suas mãos. Tenho a nítida sensação de que sou indesejada. Aí, discuto, no meio do corredor. Uma discussão em voz alta no meio de uma repartição pública é sempre um bom cartucho; haverá falatório, porque o tédio da papelada faz de qualquer incidente assunto para uma longa conversa de dois funcionários, mesmo que haja filas no guichê em frente. Uma dúzia de rostos converge para nós, interessados na fofoca. Eu falo alto, faço-me mais surda que sou, para obrigá-lo a falar alto também.
Estou com raiva, mas ao olhar um cartaz na porta da repartição, falando em atendimento cidadão, um enorme cansaço me toma inteira. À frente do cartaz, pessoas igualmente cansadas baixam a cabeça e esperam, os papéis pendurados entre os dedos. Ou melhor: seus direitos pendurados entre os dedos, inúteis diante da indiferença.
Lá dentro, vi duas novas funcionárias sem mesa, sentadas em cadeiras, esperando acho que o final do mês; uma mesa vazia, ocupada por uma senhora que lidera um animado bate-papo com dois homens – todos, funcionários sem fazer nada. Penso que um terço de tudo o que consigo ganhar vai alimentar esse ócio burocrático. E penso que chegamos a uma distorção que será muito difícil corrigir.
Daí me lembrei de Machado de Assis e seu Brás Cubas. Mais de cem anos, e nada mudou. As repartições continuam repartidas; a burocracia manuscrita tornou-se eletrônica, mas continua o mesmo dinossauro, crescendo ano após ano. E, seja imperador ou presidente, governador de Estado ou de Província, há sempre gente demais e trabalho de menos. Quanto ao cliente, usuário, ou que nome tenha – até cidadão – é apenas um detalhe, geralmente incômodo. Pronto para ser despachado para Istambul.

2 comentários:

JOSE MARIA disse...

Ana,

A descrição é perfeita e esse presente já deveria ser passado.
Afinal, já existem bons programas de gestão pública - aliás, a sigla é GESPÚBLICA - que melhorariam bastante essa situação se a ele aderisse o Município.
Mas, pelo tempo que o programa existe e as coisas ainda estão assim, imagino que ainda vai passar um bom tempo para que tal adesão aconteça.
Espero que você e eu vivamos bastante para ver esse momento.

Jornalista disse...

eu penso que só há uma coisa que faça um funcionário, concursado ou não, trabalhar direito e, muitas vezes, apenas trabalhar: o medo de perder o emprego ou, pelo menos, vantagens. Mas as normas que regem a disciplina do serviço público são letra morta, pelo menos neste Estado.
de qualquer forma,é sempre bom esperar o melhor, não?