terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um dia igual a todos os outros

São cinco horas da manhã, e acordo com um som grave e repetido, que estremece o ar. O quarto está fechado, todas as janelas da casa estão fechadas. É um carro que passa devagar – um carro de passeio – o som tão alto que ultrapassa todas as barreiras.

Levanto, vou ao banheiro. Abro a torneira, ela despeja um pequeno filete e ronca. Não há água, ainda. Vou para a cozinha e começo meu dia.

Minutos depois, buzinas ásperas se intercalam com o ronco de motores desajustados de ônibus, e assim continuará por todo o dia.

Às seis e meia, vou à padaria. Ao sair, sinto um cheiro forte de urina, recém-lançada no muro, e vejo garrafas vazias e lixo no pequeno canteiro em torno de uma árvore, em frente à minha porta. Nesse canteiro, plantei lírios do vale e vindicá, na esperança de que as flores impedissem o vandalismo. Foi em vão. Como agora, desde o começo as pessoas trouxeram seus grandes cães para fazer suas necessidades ali – e permitindo que eles arrancassem as plantas, escavassem a terra e revirassem o lixo depositado à noite por um vizinho –não sei qual - que deixa seus sacos exatamente ali.

Um ciclista passa na calçada, apesar da rua ainda estar livre de carros. Leva uma criança no varão, a caminho da escola. Não tem campainha nem buzina, nem luz, nem olho de gato. Até entendo que ele escolha a calçada para proteger a criança da selvageria do trânsito. Mas ao escolher a calçada. ele expõe outras crianças que caminham para a escola, também – e não têm culpa de nada.

Chego à padaria, e o primeiro flanelinha do dia já está a postos. (Penso se foi ele que urinou no muro, e me repreendo por isso: poderia ser qualquer um, já vi pessoas melhor vestidas fazendo isso). Ele grita para o vendedor de café e de apostas no bicho que assumiu o seu ponto na esquina fronteira, indiferente aos que dormem nas casas fechadas. Na padaria, uma fila já cansada se move em silêncio pelo balcão. Na volta, cruzo com pessoas igualmente silenciosas a caminho do trabalho.

Faz calor, agora, e vou cuidar das pequenas coisas do dia, nas ruas próximas. Tenho que desviar de cadeiras e mesas lavadas a céu aberto, um rio de espuma de sabão no chão, cobrindo meia quadra: uma sorveteria e um bar não se importam a mínima com a ginástica dos passantes tentando proteger os sapatos – e não escorregar.

Na frente da agência do banco, três camelôs armam suas barracas, abrem as cadeiras e ocupam a calçada. Um homem chega conduzindo um longo carrinho de mão: sobre ele, duas grandes e sujas vasilhas cheias de comida e um fogareiro a carvão, assando espetinhos. Ele pára, vende dois para motoristas de táxi que, depois de comerem, atiram fora o espeto e o saquinho de plástico que continha a farinha. Direto na valeta da calçada, onde já se encontram outros restos.

A fila dos idosos esperando a agência abrir é grande. Penso que os bancos conseguiram transformar privilégio em exclusão – a preferência, aqui, significa isolamento.

No supermercado, a conta dá uma fração de dois centavos. A moça do caixa arredonda: ela não tem troco, há muito tempo as moedas de um e dois centavos desapareceram de circulação. Não há dessas moedas no supermercado; pensando bem, há muito tempo eu não vejo uma delas, em lugar algum. O embalador ignora minha recusa em usar os sacos plásticos. Uma mulher espera que a caixa termine de contar uma fofoca para a supervisora e a atenda.

Atravesso a faixa, uma bicicleta passa raspando por mim. Olho a rua, há pelo menos meia dúzia de tipos mal encarados circulando por ali. Alguns estão claramente drogados. Um casal muito jovem está deitado na calçada, sobre papelão. São dez horas da manhã – penso que estão fazendo de propósito, para provocar encrenca.

Um carro de polícia passa devagar, e pára diante dos sinais exagerados que lhe faz um segurança que acabou de largar o serviço. Eu presto atenção. O rapaz sai correndo pelo meio da rua – a viatura está na faixa do meio – abre a porta e se atira para dentro. O carro vai embora sem incomodar ninguém. O segurança é, provavelmente, um policial fazendo bico – e, claro, quem ajuda amigo é.

No mesmo momento, um ônibus pára a cinco metros do acostamento, despeja seus passageiros, pega outros – todos saindo no meio dos carros, sem nenhuma estranheza.

No cruzamento próximo, buzinadas e xingamentos. Um agente de trânsito, indiferente ao que se passa, multa tranquilamente os carros estacionados na calçada, um após o outro.

O dia vai, e chega a noite. Recebi uma conta dobrada da companhia telefônica (mesma data, mesmo valor, mesma emissão, mesmo tudo); um convite todo amassado, tal a perícia com que o carteiro o colocou na caixa do correio; e o “restaurante” fronteiro começa a testar o som para mais uma noite de barulho e música ruim.

Cidadania? A gente vê na tevê...

7 comentários:

Anônimo disse...

O pior é que não existe previsão de modificação! :(
bjs

Anônimo disse...

Cruzes! Tudo isso em um só dia ou usaste de "licença poética" para mostrar as situações tão absurdas porém tão comuns nesta cidade que já foi das mangueiras e hoje é dos desmandos de toda ordem, uma verdadeira "casa da mãe Joana"?

Anônimo disse...

Lendo esta cronica a primeira reacao foi verificar o que diz o codigo de posturas da cidade a respeito disso. Para tudo tem um artigo ou paragrafo a respeito. Basta olhar no site da SEMAJ, http://www.belem.pa.gov.br/semaj/codigo_de_postura.htm. Achei importante o artigo 30 onde se le:
Art. 30 – Nos logradouros e vias públicas é defeso:

I – impedir ou dificultar a passagem de águas, servidas ou não, pelos canos, valas, sarjetas ou canais, danificando-os ou obstruíndo-os;
II – impedir a passagem de pedestres nas calçadas, com construção de tapumes ou depósito de materiais de construção ou demolição..........tabuleiros, veículos ou qualquer outro corpo que sirva de obstáculo para o trânsito livre dos mesmos.

1. é defeso também transformar as calçadas em terrace de bar, colocação de cadeiras e mesas.*

III – depositar ou queimar lixo, resíduos ou detritos

Dai eh so olhar a tabela base para aplicacao de multas e se vai verificar que a Prefeitura poderia estar com os cofres cheios se usasse bem as ferramentas que tem em maos:
02.DA LICENÇA PARA EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE EM LOGRADOURO PÚBLICO 10 U.F.M.
04.DA PROTEÇÃO ESTÉTICA, PAISAGÍSTICA E HISTÓRICA DA CIDADE 50 U.F.M.
10.DA POLUIÇÃO SONORA............................................... 100 U.F.M.
11.DA POLUIÇÃO DAS ÁGUAS........................................... 50 U.F.M.

Mas o que mais me chamou a atencao em toda a narrativa foi a constatacao de que:

Na padaria, uma fila já cansada se move em silêncio pelo balcão. Na volta, cruzo com pessoas igualmente silenciosas a caminho do trabalho

Por que este silencio por onde se passa? O paraense nao era assim.

Eli

Anônimo disse...

Ao ler a tua crônica, Ana, lembrei - não sei porque - da psicanalista inglesa chamada Melainie Klein, quando ela nos explica o que é a identificação projetiva. Ela dizia uma coisa mais ou menos assim: a maneira de olharmos o mundo externo está muito relecionado com o nosso "mundo interno". Chego a conclusão que ela tem um pouco de razão. As lentes com que vemos o mundo lá fora tem muito a ver com as nossas lentes interiores.
Tua crônica é um exemplo disso: as plantas que plantaste e que foram destruídas, o velho mundo sonhado idealizado mergulhado nos caos urbano e tantas coisas mais, como os barulhos e música ruins. Quantos "barulhos interiores" perturbando nossa imaginária paz, onde não há mais paz (e talvez nunca tenha havido)? Quantas pequenas violência e pequenos assassinatos não somos testemunhos nesse dia à dia, com as suas mesmices, com suas coisas bizarras, homens e mulheres estranhos como são os mortais? Não existe nenhuma beleza para ser vista e apreciada? Não existirá nada de estéticamente belo desse caos que nos relata depois de uma noite mal dormida? Não haverá nenhum amor cruzando os teus tortuosos caminhos?
Parece que somos hábeis (e como somos!) para projetar o nosso mundo interior na paisagem que vemos no nosso cotidiano. Lembro-me do filme "A Vida é Bela", do diretor italiano que conseguia transformar o caos do nazismo, transcendendo os seus horrores. Para isso é preciso aceitar e transcender o caos nosso de cada dia que descreves meio mau humorada na tua crônica do dia à dia. Há poesia no lixo, no homem da bicicleta que carrega e protege o seu filho, na insensibilidades e nas ausências de urbanidades. É só olhar com outras lentes.

Anônimo disse...

Ao ler a tua crônica, Ana, lembrei - não sei porque - da psicanalista inglesa chamada Melainie Klein, quando ela nos explica o que é a identificação projetiva. Ela dizia uma coisa mais ou menos assim: a maneira de olharmos o mundo externo está muito relecionado com o nosso "mundo interno". Chego a conclusão que ela tem um pouco de razão. As lentes com que vemos o mundo lá fora tem muito a ver com as nossas lentes interiores.
Tua crônica é um exemplo disso: as plantas que plantaste e que foram destruídas, o velho mundo sonhado idealizado mergulhado nos caos urbano e tantas coisas mais, como os barulhos e música ruins. Quantos "barulhos interiores" perturbando nossa imaginária paz, onde não há mais paz (e talvez nunca tenha havido)? Quantas pequenas violência e pequenos assassinatos não somos testemunhos nesse dia à dia, com as suas mesmices, com suas coisas bizarras, homens e mulheres estranhos como são os mortais? Não existe nenhuma beleza para ser vista e apreciada? Não existirá nada de estéticamente belo desse caos que nos relata depois de uma noite mal dormida? Não haverá nenhum amor cruzando os teus tortuosos caminhos?
Parece que somos hábeis (e como somos!) para projetar o nosso mundo interior na paisagem que vemos no nosso cotidiano. Lembro-me do filme "A Vida é Bela", do diretor italiano que conseguia transformar o caos do nazismo, transcendendo os seus horrores. Para isso é preciso aceitar e transcender o caos nosso de cada dia que descreves meio mau humorada na tua crônica do dia à dia. Há poesia no lixo, no homem da bicicleta que carrega e protege o seu filho, na insensibilidades e nas ausências de urbanidades. É só olhar com outras lentes.

Jornalista disse...

Não, não há licença poética. Foi um dia só. E ele se repete - se não é a lavação de calçada, é o estacionamento de carros, se não é o espetinho, é o saco de lixo; se não é o canzarrão, é o podador de árvores que deixa a acácia "no osso", por assim dizer. É desgoverno, mesmo, incivilidade.
Quanto ao código de posturas... ele diz que não é possível ter recintos de festas sem proteção contra a poluição sonora (rá!), que estes estabelecimentos não podem ficar perto de escolas e estabelecimentos de saúde (rá!rá!), que as calçadas devem ser construídas atendendo cadeirantes e carrinhos de bebê (rá!rá!rá!) - e muitas outras coisas. Mas você vai ver, e tudo tem licença...
E, sinceramente, anônimo que escreveu o último comentário: eu não vejo poesia alguma numa criança exposta; nem em adolescentes drogados vageando a pedir socorro por meio de seus corpos imundos; pode ser que minhas lentes interiores estejam turvadas pela indignação que sinto; é verdade, não vejo poesia nem beleza na miséria. Não consigo. A exaustão que sentirá o homem do carrinho pela caminhada que vai lhe comendo a vida - isto é o que vejo. A criança em risco, o adolescente pedindo socorro com seu corpo sujo - não consigo ver poesia nisso. Por isso continuo denunciando, combatendo o bom combate.
E quanto ao silêncio, Eli, estamos, sim, mais silenciosos e mais agressivos. Gritamos até não poder mais nos shows e nas igrejas. Mas o medo está nos deixando cada vez mais calados e desconfiados, assim que saímos dos nossos redutos. Você tem razão - não éramos assim.

Anônimo disse...

Quantas vezes na vida teremos de trocar de lentes? De dar a outra face? De permanecer calado para nao magoar quando estamos sendo acintosamente desrespeitados nos nossos direitos de cidadao, de ser humano, de pessoa? Longe de mim a intencao de polemizar no nivel da psicanalise com quem dela conhece. Mas em sua simpliciade, sem saber nada de Melanie ou Freud, Vovo ja repetia que "a beleza esta nos olhos de quem ve" e que "quem ama o feio, bonito lhe parece". E dai, se aquele 'que-ama-o-feio' trocar de lentes, vai constatar que, na verdade, nunca tinha visto nada realmente bonito. E ateh mesmo porque nao tinha parametros de comparacao, estava cego.

Para quem sabe a diferenca -- quem conhece mais de um lado -- entretanto, nao pode haver poesia em dizer que eh direito o que estah pelo avesso. Nem poesia em perguntar se o avesso eh o direito. Essa questao alias, nao existe. O avesso eh o que eh, o avesso. Nao adianta botar lentes cor-de-rosa. O que se obtem nao eh poesia, eh masoquismo.

Querer impingir culpa a um presumido mau-humor do cronista eh um caso gravissimo de hipermetropia. Eh nao ver o que estah diante dos olhos. Eh, tambem, querer culpar o mensageiro pelo teor da mensagem. E chega a ser um delirio querer que aceitemos, com o determinismo de 'La Vita eh Bella', o caos nosso de cada dia, como no filme de Roberto Benigni.

O paraense sempre reagiu a injusticas e imposicoes. Lembra a Cabanagem? Houve tambem um tempo em que um grupo tentou prender, arrebentar, silenciar, censurar, impor sua visao ao pais inteiro ... E nao conseguiu. Nao conseguiu porque a maioria foi para a rua, cantou, protestou e mostrou no voto a sua revolta. A maioria mostrou sua coragem, mesmo quando fuzis e baionetas foram empunhadas contra ela. Mesmo quando parecia nao haver saida, havia a vontade de lutar. Ninguem se acomodou. Ninguem aceitou a imposicao. E com luta, com esforco, mudou-se a realidade imposta naquela epoca.

Por isso me choca essa narrativa. Em meio aquele caos, Chico Buarque chegou a denunciar que "A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão". Hoje a Ana nos relata o silencio das pessoas, marcado pela desconfianca, o medo. Que outros sentimentos afligem as pessoas descritas na fila da padaria? Serah que hoje as pessoas tambem estao se sentindo silenciadas pelo medo, censuradas pelo isolamento, enjauladas pela violencia das ruas, obrigadas a aceitar essa ditadura imposta pelo descaso, pela miopia daqueles que deveriam guia-las?

Felizmente, acho, lah como ca, ainda ha tempo para reagir, virar o jogo. No Ira, o povo usou a Internet para enfrentar os aitohlas e escancarar para o mundo imagens da intolerancia; em 2008, um negro quase desconhecido usou a Internet para se eleger Presidente da Republica; em 2009, nos Estados Unidos, foi a vez dos Republicanos promoverem uma campanha pela Internet para levar milhares de pessoas para frente da Casa Branca a protestar contra mudancas no sistema americano de saude. Pois bem, se estamos sendo empurrados das ruas para dentro das casas, nao precisamos nos isolar, silenciar. A Internet eh uma excelente ferramenta para os movimentos "grassroots" -- organizar, trocar emails com ideias e experiencia, exigir um choque de realidade, mais acao, mais coragem, e mudancas. Por que nao? Afinal de contas, os governantes tambem leem blogs e tem um endereco de email.

Eli