segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Chávez e Barata

Reza a lenda que o tenente Barata, interventor no Estado do Pará nos idos de 30, precisava encontrar um secretário de Agricultura. Caudilhesco, populista, fiel ao princípío básico do tenentismo, que consistia em erradicar as oligarquias de qualquer maneira, dando vez aos pobres, escolheu para o cargo, numa audiência pública, um lavrador semi-analfabeto. Lameira Bittencourt, um culto oligarca - que seria mais tarde procurador da República, senador, e cuja tese sobre eutanásia é até hoje citação obrigatória em trabalhos sobre o assunto - era considerado a “sombra” de Barata. Chocado, com a sala cheia, Lameira sussurra para Barata: “Mas governador, o homem não tem o anel!”- querendo referir-se, discretamente, que o homem não era formado em faculdade. Barata, bate-pronto, manda comprar um anel, coloca-o no dedo do escolhido e diz: “Pronto, agora ele já tem anel. Mande fazer o decreto de nomeação!”

Diz a lenda ainda que Barata costumava percorrer Belém com o secretário a tiracolo selecionando áreas para expropriação. Via um grande terreno, mandava expropriar e ali mesmo indicava as pessoas para quem entregar as terras. Acompanhar Barata era uma loteria que podia render um terreno – ele vivia com o povo atrás. A lenda conta ainda que algumas pessoas que emergiram com o tenentismo logo se apropriariam dessas terras – comprando-as a preço de banana dos novos proprietários – e, mais adiante, se tornariam pilares da sociedade burguesa.

Eu falo em lenda porque essas histórias são da tradição oral do povo paraense: trinta anos de baratismo no Estado foram de censura, truculência, perseguições políticas, destruição de jornais e queima de livros. Pouco sobrou de registros independentes – só na memória do povo, que pode enfeitar a História, mas a mantém viva.

Essas coisas me vieram à lembrança na leitura dos jornais de hoje, reproduzindo o programa de rádio matinal de Hugo Chávez: “Exproprie-se!” – e o povo atrás, tentando acertar na loteria.

O século é outro, mas o método é o mesmo. O que me leva a crer que nós, povos latino-americanos, vivemos uma espécie de nostalgia imperial. A natural evolução da História – da tribo ao clã, do clã ao barão, do barão ao rei, do rei à constituição - aqui foi truncada pela colonização européia. Não é sem razão que os pobres chamam os milionários de “barões”: no fundo, apesar das eleições, sentem-se vassalos. Dos patrões, dos ricos, dos filantropos talvez. Passam a vida recolhendo o que cai das mesas, tentando um golpe de sorte – como, por exemplo, agradar ao Supremo Magistrado para merecer benesses que este distribui, de forma ostensiva, como Barata e Chávez, ou de forma mais sutil, como Perón e Lula. Quase cem anos de intervalo entre os primeiros e os segundos: os “descamisados” viraram “excluídos”, mas o lema de que tudo se resolve com militância bem formada em escolas ou organizações continua de pé.

Não queiram ver nestas linhas um pessimismo que não existe. A evolução humana tem passos curtos e lentos – dois passos à frente e um atrás, segundo Mao Tse Tung – mas ela vai adiante. Brasil, Argentina e Venezuela evoluíram muito neste quase século – em qualidade de vida, em opção política, em civilização. Mas não há como fugir da dialética hegeliana aplicada à História - ou dialética marxista, se preferirem.

É sempre triste ver o momento do passo atrás, porque este é puxado por âncoras culturais profundas, modelos antigos, hábitos arraigados, ignorância. O que consola é que este retrocesso talvez seja essencial para a continuidade de um povo. E que, queiram ou não os caudilhos de plantão, como mostra a historinha do começo deste texto, a censura nada pode sobre a memória de um povo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ao ler seu comentário lembro-me das reflexões que tenho feito sobre os modelos sociológicos que, consciente ou inconscientemente, internalizamos quando observação a realidade. Não a realidade dos tipos ideais que Max Weber construiu como categorias para compreender (essa é uma de suas palavras chaves) o mundo. Impressionante como somos herdeiros de uma certa visão sociológica que trabalha com elementos teóricos como avançados e atrasado, tadicional x moderno. Max Weber, por exemplo, como um dos herdeiros do iluminismo afirma que o poder tradicional pouco a pouco, à medida que o capitalismo vai ganhando novas configurações, do tradicional para a racionalidade. Racionalidade esta que significa a imnpessoalidade, que termina no que ele chamou de "jaula de ferro" no final de seu livro "A ética Protestante". Marx, Durkheim, os "três porquinhos" que compõem como Weber os "três porquinhos" da sociologia clássica, como bons iluministas, pensavam quase na mesma linha. Durkheim procurando compreender a mudança e criando os conceitos de "solidariedade mecânica" e "orgânica", Marx com seu evolucionismo auxiliado por Hegel que dizia que tudo que real é racional e tudo que é racional é também real.
Tenho me perguntado: não será isso um imaginário sobre a sociedade, construído em uma época? As sociedades, mesmo aquelas que se dizem hoje evoluídas, por acaso aboliram o pathos, a paixão, a emoção como forma de agir? Será que o real é mesmo racional? Freud que era um iluminista, também, nos mostrou que essa racionalidade, a deusa da modernidade, era movida por outras forças, as forças de desejo. Não será esse mesmo desejo que marca a história dos homens? Veja o que acontece no mundo dito civilizado. Hitler era um carismático, conforme compreendia Weber, e levou a nação alemã para onde todos nós sabemos. Existirá mesmo essa história de dois passos à frente e um atrás, do chinês? Para frente de quê e como?
Tenho, hoje desconfiança nessas visões que, mesmo sem saber, inspiram-se em certa leitura do mundo sempre buscando encaixar o mundo real nos seus esquemas. Talvez não custasse nada ler o que nos diz, por exemplo, Nietzsche sobre o que ele chamou de vontade de poder, pois é ele que parece mover o mundo. Mesmo a idéia de atrasado e avançado demonstra essa vontade de poder que está presente tanto no caudilho tupiniquim, como caudilhos dos ditos civilizados, como nos Buschs da vida, Mussolini e tantos outros. Virou moda na sociologia chamar todo mundo que acena para o povo de populista. Um estudo recente da sociologia brasileira brasileira desconstroi (precisamos de Derrida) as análises do populismo teorizado por vários sociólogos daqui. Os imaginários, são, sim, "puxados por âncoras culturais" bem mais profundas do que as simplificações (comodas) de quem quer encaixar o mundo da vida em esquemas pré fabricados. Aí baniríamos esses palavras como retrocessos, avanços e tantas outros que tornam nossos discursos tão chatos e repetitivos.

Jornalista disse...

Benedito?
Sendo ou não, deixe-me dizer que o chinês não era um estudioso - era um guerreiro, e valente, de forma que o que ele disse é prática com laivo teórico. Eu penso em avanço e retrocesso contemplando a extensão da vida humana e o tratamento dado às crianças. Oh, sim, o mundo melhorou. Também penso que os filósofos, às vezes, descobrem verdades. E a dialética de Hegel se encaixa nisso. Einstein provou que a física newtoniana não esgota tudo. O que não quer dizer que a física de Newton esteja errada...
Às vezes penso se o momento que vivemos corresponde a uma transformação, com a formação de uma nova elite e a criação de outros parâmetros, ou seja: o início de algum tempo de crise de mudança. Mas, efetivamente, não sei. E concordo com você que o mundo é movido a paixão: os sete pecados capitais e as sete virtudes teologais. Mas isso é individual, gregariamente potencializado - o que é outra história...
obrigada, Ana