segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O legado de Neuton

O conhecimento vem de longe. Dos tempos de chumbo dos anos 70 – bem mais duros que os anos 60 – cimentado por Paulo Fontelles e José Luiz Guedes.

Nós, os católicos integrantes da JEC, JUC e depois Ação Popular, nos opúnhamos ferrenhamente ao PC, depois PCB e PC do B. A repressão nos enfiou no mesmo saco – ops!, nas mesmas celas. Foi quando nos conhecemos: uns por Deus, outros pela História, lutávamos pela dignidade, pela liberdade, pela integridade das pessoas e pela melhoria da vida das multidões. Nas prisões, o que menos importava era a razão da resistência; lutávamos, precisávamos lutar para salvaguardar companheiros, para manter esperanças acesas e a causa viva. Não importava se o lutador era o liberal Altino Dantas, ou a violenta Dilma Roussef, ou o cristianíssimo João Travassos. Ou, ainda, o radical Neuton Miranda.

É desde esse tempo, quarenta anos! que admiro e respeito Neuton Miranda. Dos tempos em que era necessário fazer chegar suprimentos à guerrilha, retirar pessoas marcadas de uma cidade cheia de barricadas, esconder crianças em caixas para que chegassem aos avós, misturar crianças com perseguidos para que estes pudessem escapar.

Quando começou a distensão, que se marcaram as eleições, uma vez eu conversava com Neuton e dizia: “Neuton, estou com medo. Está muito fácil...” E ele me respondia, tranquilo: “Temos que acreditar e avançar; não podemos perder a oportunidade; se estiveres com a razão, logo saberemos.” Soubemos logo que eu não tinha razão – logo a democracia voltava com a Constituição de 88.

Nossa relação era, pois, cimentada em crenças diferentes, mas objetivos comuns; a militância política desviou nosso caminho, promoveu encontros em diferentes momentos e desencontros em outros; no entanto, como dividimos uma vez o pão e o medo, guardava aquela confiança mútua que somente companheiros de trincheira podem ter.

Creio que posso falar hoje o que Neuton não gostaria que eu dissesse quando vivo. Íntegro, leal e correto em suas alianças – em que, aliás, sempre deixou claro serem temporárias, porque ele era um comunista e, como Niemayer, nunca abdicou disso – jamais criticou seus aliados de ocasião. Eu sempre respeitei seu comportamento. Mas hoje, com ele morto, sinto-me na obrigação de contar para todos os que me lêem as condições atrozes com que ele administrou a unidade regional da Secretaria de Patrimônio da União.

Bem, para começo de conversa, ele não tinha orçamento próprio. Seu orçamento estava dentro do Ministério do Planejamento que absolutamente nunca teve o Pará como prioridade. Para continuar a conversa: seu pessoal se resumia a meia dúzia de gatos pingados. E para finalizar: teria que administrar tirando leite de pedra, arranjando parceiros, se quisesse fazer alguma coisa.

Eu tinha ido lá, pela Paratur, preocupada com a situação da ilha das Onças, em processo de favelização do pior tipo, e tentar uma forma de começar a regularizar a ocupação das ilhas fronteiriças a Belém. Neuton não tinha condições sequer de formalizar um convênio. Fiquei horrorizada. Neuton, entretanto, me expôs um projeto ambicioso, e me disse: vou fazer. E fez o que foi possível, dobrou vontades, arranjou parceiros, e morreu fazendo pessoas muito pobres felizes por nunca mais terem que se defrontar com o fantasma da expulsão.

Políticos como ele, que resistem às derrotas eleitorais e resistem à corrupção do poder; que enfrentam as dificuldades com a coragem necessária – das armas à palavra, da palavra ao trabalho silencioso sobre a papelada, mas sempre uma medida de esforço geralmente ignorada – representam o que de melhor temos no povo brasileiro.

E é por isso que, mesmo sendo de outro partido, ocasionalmente em oposição ao PC do B, escrevo estas linhas: para preservar o legado de integridade e coragem que um político como Neuton Miranda nos deixa.

5 comentários:

Bia disse...

Querida Ana,

se um dia eu tiver a sua grandeza, quem sabe eu arranje um lugar naquele céu especial que deve existir para os ateus que têm fé na humanidade.

Beijos.

Jornalista disse...

você já tem esse lugar... que o digam os quilombolas.
Ana

Anônimo disse...

Lembro que você, Ana, chefiando todos nós, era interlocutora frequente do Neuton. Aliás, aquela fornada de jornalistas, com você à frente, lá por 1984, no finzinho da ditadura, tensionou para o bem o monocórdico noticiário, amordaçado pela força do capital que ocupava majoritariamente os espaços com montanhas de notícias da Fiepa, Sudam, CDL, ACP. Aquela geração de jornalistas que você comandou foi caixa amplificadora para as vozes de Neuton, João Batista, Paulo Fonteles, Socorro Gomes, CPT, Arnaldo Jordy, Zélia Amador de Deus, DCE da UFPA e um então projeto de partido chamado PT.
Grande abraço,
Euclides Farias

Anônimo disse...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu

Paulo Fonteles Filho disse...

Querida Ana,

Lí teu artigo e me emocionei. Ao lembrares do Neuton falas de toda uma geração que, como bem dizes "dividiu o pão e o medo". Geração de homens e mulheres que, como dizia Lupicínio Rodrigues "deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz". E toda a nossa construção democrática e a mais bela das palavras de nosso vocabulário - a Liberdade - foi construção de gente como o Neuton e de gente como você. Essas vidas vividas construindo a manhã não se perdem: se transformam no fraternal exemplo para todos nós.

Com carinho,

Paulo Fonteles Filho.