Li, não sei mais onde e há algum tempo, que um dos subprodutos da profunda mudança de comportamento sexual no último século é a inserção de valores femininos na educação masculina. E, no último livro que li – “Sábado”, uma novela mais ou menos bem construída, mas em compensação tratando com extrema competência da vida contemporânea numa grande cidade – um dos personagens diz para o pai algo como: essas coisas grandes, o aquecimento global, a guerra nuclear, a fome mundial, tudo me assusta; mas ao mesmo tempo eu fico feliz com minha namorada ou uma música bacana. Então, penso em coisas pequenas.
E penso eu aqui que essas coisas pequenas são valores femininos.
Porque, chova cinza nuclear ou canivete, exploda o mundo em volta em bombardeios, a quantidade de sal que vai na panela é sempre um problema crucial para uma mulher. A pitada a mais ou a menos sempre preocupará uma mulher em qualquer circunstância.
Em “Sharon e minha sogra”, a professora Suad Amiry espia pela janela os tanques israelenses passando na porta de sua casa, cercada e fechada, e escreve em seu diário que a água que tem é pouca. “Sharon e minha sogra” é um diário de guerra – feminino.
Recentemente, num casamento, os homens choravam tanto quanto as mulheres. As razões eram diferentes, mas o fato de haver lágrimas em público num momento desses, me fez pensar que, de fato, algo mudou. Sou de uma geração educada com extremo rigor nesse aspecto – mesmo para nós, mulheres, era proibido chorar em público. Uma educação de guerra masculina, cujo substrato era: transforme sua dor em raiva, em ódio, em agressão. E não demonstre sua dor, ou você se fragilizará diante do adversário, que eram todos os outros.
Eu poderia saudar como um sintoma de melhoria do mundo essa transformação, mas tenho cá minhas dúvidas. Mulheres enraivecidas foram o estopim da queda da Bastilha; as mães da praça de Maio, hoje avós, mostram ao mundo todo a persistência de uma luta que começou aparentemente perdida. Um dos mais cruéis capitães piratas era uma mulher. E foram as ranis que forçaram os ingleses a pagar caro a conquista da Índia, guerreando palmo a palmo, território a território. E há ainda a Senhora Wu, Lucrecia Borgia...
Também não vi grandes mudanças com a entrada das mulheres na política partidária. Hilary segue a tradição, Tatcher e Golda Meir, também. Aliás, Golda foi muito diferente da grande patrona judia, a Rainha Esther... que, como Isabel da Hungria, apelou para o amor para salvar um povo.
De qualquer maneira, esta revisão de valores culturais e educacionais tende a uma uniformidade, a um equilíbrio, desta vez mundial, priorizando a convivência e reconhecendo e respeitando as diferenças.
E talvez que o permear dos valores masculino e feminino seja de fato profundo, e, finalmente, ponha um cobro no delírio guerreiro, e possamos curtir uma paz prolongada, mundial, em que o sal numa panela cheia seja apenas uma alegre dúvida.
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Recebi, por e-mail, artigo-comentário de Benedito Carvalho, que decidi postar junto com esta crônica não só por se tratar de um ponto de vista masculino, como também por sua beleza.
EDUCAÇÃO DE GERRA MASCULINA E O SEU PREÇO
Benedito Carvalho
O historiador Eric Hobsbawn, no seu belo trabalho "Era dos Extremos", disse que a única revolução exitosa no breve século vinte foi a feminina. Concordo plenamente. Quem viveu uma parte de sua juventude numa província, como vivi em Belém do Pará, sabe o que significou (e significa) ser homem e mulher. Basta folhear o livro chamado "A dominação masculina", do sociólogo Pierre Bourdieu, que estudou os cabilas na Argélia, onde nasceu e passou sua infância, para perceber como aquilo que ele chamou de "habitus" não desaparece num século somente. Nos mostra como a nossa (e quando digo nossa, falo do homem e da mulher) subjetividade está profundamente marcada por toda uma cultura patriarcal, visivelmente presente no nosso comportamento, na maneira como vemos o mundo, como sentimos, como desejamos e amamos... E, também, como nos comportamos no mundo político.
A que se deve isto?
Tenho lido muito, procurando compreender os lados obscuros da construção da masculinidade, a chamada identidade masculina. E vejo como esse comportamento, que você, de forma perspicaz, observa na sua crônica, está tão presente em pleno século XXI. E não vai desaparecer tão cedo, porque o processo de mudança é lento. O machismo (e quando falo do machismo, me refiro também ao internalizado desse machismo pelas mulheres) está tão sedimentado, como uma rocha milenar, e não será eliminado enquanto essa rocha dura (Reich chamava de couraça) do patriarcalismo predominar, colonizando o nosso mundo interior.
Repetindo as observações do Bourdieu, o machismo, o patriarcalismo está tão enrustido que aparece em nossa fala (quente x frio; sensível x não sensível, veja a nossa linguagem!), na nossa forma de vestir, na nossa forma de fazer política, nas nossas interdições e nas mil formas de manifestações de nossa subjetividade. A masculinidade e a feminilidade são culturalmente construídas historicamente, variando segundo as sociedades.
E cada vez me convenço mais como é mais difícil "construir" um homem do que uma mulher. Desde a nossa concepção até a vida adulta viril, nós, homens, temos que aparecer fortes, os que não choram, como você diz.
Você reconhece que as coisas estão mudando e mostra-se esperançosa com os novos sinais dos tempos, como se dizia na época do Vaticano II. “Recentemente, - diz - num casamento, os homens choravam tanto quanto as mulheres. As razões eram diferentes, mas o fato de haver lágrimas em público num momento desses, me fez pensar que, de fato, algo mudou".
Mas reconhece logo depois:
“Sou de uma geração educada com extremo rigor nesse aspecto – mesmo para nós, mulheres, era proibido chorar em público. Uma educação de guerra masculina, cujo substrato era: transforme sua dor em raiva, em ódio, em agressão. E não demonstre sua dor, ou você se fragilizará diante do adversário, que eram todos os outros".
Ana, é verdade, a guerra masculina obrigava a isso e sobrava para as mulheres. Mas eu duvido que nessa guerra vocês mulheres sentiam-se do mesmo jeito, apesar de toda a opressão. Os homens pareciam como uma muralha, duros, mostrando-se aparentemente insensíveis. Mas, o que se escondia por trás dessa aparente fortaleza?
Na verdade, somos de uma vulnerabilidade imensa. Você, como mulher, nem imagina, ou se imagina não sabe como isso está entranhado dentro de nós. Isso porque nos “ensinaram”, (adestraram, essa é a melhor palavra) desde criança que a construção do que significa ser homem, (ser macho, como se diz no nordeste) deve ser vista como um exercício permanente para nos convencer (e convencer os outros) de que não somos uma mulher, (mulherzinha), um bebê (frágil criatura) ou um homossexual. O “verdadeiro homem” não chora, é um durão, que não deve - como disse você - manifestar os seus sentimentos; um “eterno soldado vigilante”, uma espécie de “Rambo”, segundo a versão cinematográfica americana (recordo aqui aquele militar do filme Beleza Americana, que nos mostra o outro lado do Rambo!).
Fomos historicamente criados para aprender a ser homens. Para isso, passamos por ritos que nos marcaram profundamente, como nos mostrou Badinter. Ritos de iniciação, normalmente dolorosos, na transformação do menino em homem, presente em todas as culturas mesmo hoje menos evidentes ou esmaecidas. Virilidade expressa no corpo e no comportamento. Como disse um autor: “Preocupado em não perder sua esfumada rota, o macho dominante tem horror de atravessar os limites do "masculino" e por isso sempre impôs rígidos padrões diferenciados – de comportamento, de pensamento e até de moda – a si mesmo e à mulher”.
Nós, os meninos-machos, fomos orientados para sermos os provedores e protetores e, desde cedo, fomos treinados a suportar sem chorar as dores físicas e emocionais. A dor é antes de tudo assunto de mulheres. Por isso, o homem deve desprezá-la, sob pena de se ver desvirilizado e de ser rebaixado ao nível da condição feminina. A violência masculina também é estimulada pela educação. O menino deve revidar se apanhar, como também deve praticar esportes em que a violência sempre está presente e é aceita.[1] Assim foi (e ainda é) o nosso mundo. E essa herança levamos para a vida pública, para a política, para a nossa relação com o outro e a outra. Na maioria das vezes também para o túmulo.
Mas, posso garantir, Ana, que, ao viver sob essa couraça, esse ideal de masculinidade, pagamos um alto preço. Há um "silenciamento" sobre o ônus de sustentar este “ideal heróico”. Estamos cansados de ver amigos, colegas de trabalho, conhecidos, que, na vida, se matam para sustentar essa imagem. Muitos, por exemplo, acham-se invulneráveis, não se cuidam, não fazem exame de próstata, pelo medo de aparecerem frágeis e outros medos bem conhecidos. Como fomos criados num mundo onde o macho se via como provedor, é com muito sofrimento que experimentamos uma sociedade onde a força física, cada vez mais, já não representa a garantia de um trabalho. Desmaterializa-se a produção e, ao mesmo tempo, torna-se desnecessário o trabalho bruto e desumanizador. O que vale agora é a sensibilidade, a capacidade de se relacionar afetivamente, a chamada inteligência emocional.
Não é por menos que a nossa grande interrogação, no momento em que perdemos o poder, é saber o que as mulheres querem de nós hoje, já que o machão cada vez cabe menos no figurino demandado pela sociedade. Talvez, por isso, podemos compreender o desnorteamento em que vivemos na sociedade dos machos, onde muitos apelam para a violência contra suas companheiras, na maioria das vezes porque ousam assumir suas vidas, os seus desejos.
É como se, no fundo, nos perguntássemos: “e agora? O que faço com os meus duros músculos, minha agressividade, com a minha afetividade, se vivemos num mundo cada vez mais feminino? (a Cidade das Mulheres, de Felini?)
Veja a nossa dificuldade em procurar ajuda ou cuidados médicos, enfim, em ser assistido, já que fomos criados para assistir e prover. Para vocês, o sexo dito frágil, pedir ajuda não parece desmerecê-las nem diminuir sua auto-estima, como é o nosso caso. O modo como vocês foram socializadas gerou uma maior preocupação com o corpo. O preço do nosso endurecimento é a morte mais precoce e tantos outros problemas.
Tenho minhas dúvidas, Ana, que o “permear dos valores masculino e feminino seja de fato profundo”, como diz, esperançosa. Você, que atravessou por tantos obstáculos nessa província, numa época em que ser mulher, ser feminista, socialista, uma indignada cristã, era motivo de perseguição, sabe muito bem o valor de sua liberdade e o que vem significando as mudanças de valores para as mulheres que hoje vivem na sociedade brasileira. Muitas (talvez a maioria) não sabem o que significava ser mulher nos tempos duros da ditadura militar.
Que você continue com seu “cobro no delírio guerreiro, e possamos curtir uma paz prolongada, mundial, em que o sal numa panela cheia seja apenas uma alegre dúvida”, como diz. Mas, cuidado com o excesso de sal, que pode matar o novo homem emancipado.
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Um comentário:
Bom dia, querida Ana:
longe dessa guerra e mais próxima da paz...rsrsrs...comemoro hoje só o seu aniversário.
Beijão.
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