quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O revelhom

Fui cair de cabeça num revelhom em Ajuruteua, Bragança, Pará.

Revelhom é a festa de entrada do ano à base de som e cerveja. No caso, uma festa de laje levada para a praia.

Como fui parar lá? Simples, eu gosto da Bragança brasileira, do seu jeito índio, embora ainda haja veleidades portuguesas por lá. Gosto das grandes imagens de São Benedito, de barro, com um pano sobre os braços estendidos, onde se coloca um Menino no dia de Natal. Gosto do beiju de puba ou de macaxeira, assado em folhas de bananeira ou de taioba. Gosto de ver tomarem cerveja com limão no trapiche da cidade. Eu queria ver a Marujada. Não vi, e, em troca, pude apreciar um revelhom.

Um revelhom que se preze começa na manhã do dia 31. Eram sete horas, e a madrugadora aqui esperava o café enquanto acabava de contemplar o amanhecer sem aurora destas plagas equatoriais quando chegou o primeiro participante. Um Palio escuro que estacionou na praia.

Dele desembarcaram uma família de seis pessoas, uma mesa, um grande guardassol, cadeiras, o indispensável isopor, depositado cuidadosamente na areia e um número indefinido de sacolas. A gorducha mulher, de biquíni coberto por uma saída de crochê, ajeitou o espaço enquanto o jovem e barrigudo marido abria a mala do carro. E aí da fileira de caixas explodiu o primeiro som do revelhom.

Não era o primeiro do dia, visto que, no bar da pousada, uma outra fileira de caixas já guinchava. Mas assinalava o começo da passagem do ano que, no jeito índio de ser, em que as festas são longas, leva dois dias para acontecer completamente.

Algum músico talvez um dia me explique a preferência do público pelo número três. Bum, bum, bum! Ui, ui, ui! Lícia, lícia, lícia! Ão, ão, ão! Um carro, dois carros, três carros - a praia ficou cheia deles. Cada macaco no seu galho: grupinhos com seu próprio som, todos diferentes, todos com o mesmo ritmo ternário e nenhum com música, porque, por mais boa vontade que se tenha, seria um desrespeito muito grande com qualquer maestro chamar de música esses sons.

As pessoas iam ao mar, voltavam do mar, comiam, bebiam, gritavam uns com os outros, iam e voltavam do mar novamente, caminhavam um pouco. Ninguém dançava. O tumtumtum me lembrou das festas índias e imaginei que, se fizessem duas alas, batendo os pés, aquela multidão iria delirar, ao completar suas raízes primárias.

Saímos de lá em busca de alguma tranquilidade. Nas estreitas ruas de Ajuruteua, coalhadas de carros e gente, não havia qualquer intervalo sem barulho de pelo menos 80 decibéis. As pessoas tomavam o rumo da praia, com seus isopores, sacolas e risadas. As caminhonetes 4x4 conduziam, além da indefectível torre sonora, até geladeira, porque montar barraca, no reveilhom, não é só armar um gazebinho ou um guardassol. Envolve logística: som, isopor ou geladeira cheios, espreguiçadeira, a redinha do bebê, algumas mesas e respectivas cadeiras, pratos de plástico e colheres, copos de plástico e canecas térmicas, artefatos para brincar na areia e, naturalmente, uma bola. Que, no revelhom, fica esquecida em um canto qualquer.

Encontramos um cantinho num bar onde uma enorme placa dizia: proibido o som automotivo. Não seja por isso, raciocinou um homem que comandava uma mesa de cerca de dez pessoas. Ele tirou do carro um porquinho de plástico cor de rosa, com dois enormes olhos telados e o instalou na sua mesa. Era um som. Dos pesados.

O dono do bar explicou-nos pacientemente que só havia aquele som porque a maré estava alta. Depois, quando o mar recuasse, seria bem pior.

Bem, nós mudamos de lugar e almoçamos uma imensa enchova assada na brasa.

Mais tarde pudemos conferir a veracidade da informação do homem. A praia se encheu de aparelhos de som, montados em carrinho de mão, bicicleta, motocicleta, carro de passeio ou carro utilitário. As pessoas desfilavam o som e concluí que essa era a diversão. Ocasionalmente faziam alguma outra coisa, como beber e comer. Nas ondas, um ou outro adulto acompanhando criança e um herói que resolveu surfar, por cerca de dez minutos, no seu parapente.

Os maçaricos e gaivotas desapareceram. Só ficaram os urubus, planando ao vento. E nem pipas havia para concorrer com eles.

Na pousada, a cacofonia se instalou definitivamente: um carro estacionou na porta e um potente conjunto despejou som para dentro. Agora havia um tecnobrega na entrada, outro no bar, e tudo o que vinha da praia e da rua. Houve um momento que o mais alto deles mudou para pagode. Por incrível que pareça, foi um alívio. Um de meus filhos conseguiu achar outro alívio: o sertanejo estava ausente.

À noite, todo mundo na praia, cheia de grupos bêbados. Finalmente dançou-se: um tremeterra estacionou, um DJ assumiu o comando e sufocou o som automotivo. O ritmo era o mesmo: ui, ui, ui! Lícia, lícia, lícia! Mas pelo menos agora as pessoas gritavam e pulavam.

Meia noite, fogos de artifício. Um canhão de luz iluminou as nuvens, competindo com a lua em minguante.

Bem, as crianças dormiram. Elas dormem, não é? Desde que estejam cansadas, e o mar cansa.

Quatro da manhã – e a luz apagou. Blecaute total. Metade do ruído foi substituído pelo rugido dos motores: carros e motos em pegas na praia escura, num alucinado globo da morte. Pela manhã veríamos círculos perfeitos e paralelos aqui e ali e as fundas marcas das derrapadas.

A arena em torno do tremeterra começou a diminuir mas, às cinco, a energia voltou. E o revelhom prosseguiu.

No bar da pousada uma mesa animadíssima, comandada pela própria dona, bebia todas e dançava o que viesse: há muito tempo que eu não via a velha dança de gafieira, pé com pé, coxa com coxa. Como alternativa, a funqueira, com os casais rebolando juntos até o chão. Samba, carimbó, marchinha? Quem falou nisso? É revelhom, e o carnaval é só em fevereiro!

Oito horas e o gerente da pousada resolveu impor moral: os hóspedes aguardavam desde as sete o café da manhã, mas madame e seus convidados não estavam nem aí. Ele resolveu a parada simplesmente tirando as mesas da frente do grupo, que se mudou para mais adiante. Mas um homem permaneceu sentado, no mesmo lugar, imóvel. Ele dormia profundamente, apesar dos mais de cem decibéis de som. E foi difícil acordá-lo.

Quando eu levava à boca a xícara de café doce demais vi o Palio escuro se instalar na areia da praia e desembarcar sua carga. O revelhom estava emendando no domingo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ana,
Um Feliz Ano Novo pra vc, que já começou bem embalado, não por sons que despertam a alma como gostariamos. Posso lhe garantir que em outros lugares, um pouco mais concorrido desse nosso inteiro Pará, a mesma "peça" foi apresentada. No Atalaia, em Salinas, mudei de acampamento por duas vezes pra fugir de um tremeterra montado em uma pick-up de luxo com placa de Goiás.
Meus ouvidos não aguentaram a invasão de tanta porcaria sertaneja.
Recorrer a quem??? Pedir providências a que autoridade???
Vc não estava só nesse final de Ano! Muitos outros carros escuros importunaram muita gente.
Edna F.