segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O cão mais querido

Ele é branco, com malhas marrons. Circula pela rua com uma orgulhosa coleira de peitoral azul, que não se engata em guia alguma: mera elegância canina combinada com a prudência do aviso que o cão tem quem se interesse por ele, porque dono, mesmo, ele não tem. É puro vira-lata: independente, com boas presas, capacidade de discernir sozinho e corretamente quanto avançar e quando correr, um bom faro para fêmeas e o espírito de explorador que faz com que reviste criteriosamente todas as calçadas, montículos, gramados, portões e portas do quarteirão.
Jamais late à toa, bem diferente dos nervosos espécimes que passeiam de manhã cedo, firmemente presos a um humano qualquer. Ele confere ao nervosismo dos lulus um silencioso desprezo, expresso pela imobilidade e um olhar dirigido diretamente para a próxima esquina, embora o cachorrinho saltite em torno dele. Todos os dias eu cruzo com a sua indiferença, apesar do cheiro do meu cachorro nas minhas roupas. Ele não pede afago e nem procura contato. Basta-lhe estar por perto e existir. Claro, alguém lhe dará um banho, outro alguém, comida. Quanto à água, ele se vira.
É um cão querido, mas não se dá o direito de, por isso, aproximar-se demais das pessoas. Seu instinto de vira-lata não permite. Mal ele sabe que a vizinhança não seria a mesma se ele se ausentasse.
Num destes domingos uma fantástica reportagem mostrou um lulu como o mais querido do Brasil porque tem dois mil e tantos registros na nobiliarquia canina. A tolice da reportagem não considerou que esse número de registros é absolutamente irrisório quando se considera os 33 milhões de cães que se estima existirem no Brasil, a maioria deles muito amada, anônima e mestiça como esse cão malhado que me atravessa as manhãs. Lulu da Pomerânia? Rá, diria o José Simão.
Às vezes eu penso que falta assunto para a revista de domingo e, às vezes, que falta critério. Ou o esforço de exatidão que faz o drama e a glória do jornalismo. Eu fui solidária com o cachorro malhado: desliguei a tevê.
É verdade que eu já andava irritada com o programa, por causa daquela série, copiada sem pudor da tevê americana (ou talvez comprada, não sei) de criar falsas situações para ver a reação das pessoas. Essa série pega pesado em coisas muito sérias. Expõe pessoas de boa fé e mente desavergonhadamente. Ou alguém acredita que a reação negativa não existe e não foi deliberadamente cortada da exibição? Meço por mim: se acontecesse comigo, no mínimo o repórter ouviria meia dúzia de desaforos. Porque fabricar fatos é desacreditar completamente o jornalismo e transformar o cidadão em palhaço.
Afinal de contas, dignidade é um atributo indispensável. Também para cachorros. E, embora o mui digno cão malhado de peitoral azul brilhante não saiba o que passa na tevê, faço questão de dizer que é ele, o vira-lata, o cão mais querido do Brasil.
Espionagem, uma pergunta:
O Brasil tem espiões?

Um comentário:

Anônimo disse...

Ana,
Os canais abertos descobriram que investir na abertura de novos canais e programas direcionados nas fechadas dá mais retorno financeiro. Ora, vc PAGA para assistir uma programação mais seletiva e de qualidade - duvidosa e repetitiva, muitas vezes. Então, por que primar pela qualidade, pela decência, pelo jornalismo de qualidade?? O que importa e ganhar a audiência e se manter no topo do "Ibope", sob pena de ver seus telespectadores migrarem para outro programa. O Fantástico mudou tanto suas características que, no afã de continuar o nº 1 do domingo, se igualou aos concorrentes, com um pouco mais de refinamento para não ser tão vulgar. Tem muita gente comn saudade do Silvio Santos fazendo pegadinha com o público nas ruas. Ele, pelo menos criava situações bem mais engraçadas de puro entretenimento.
Com toda a certeza, quem paga pra escolher o que assistir é privilegiado.
Edna F.